Sem Tombamento, Sem Memória: O Patrimônio Missioneiro e a Omissão Institucional

 

São Jorge Missioneiro


Em 17 de maio de 2020, após um alerta do professor e pesquisador da arte sacra missioneira Edson Hüttner, soou para nós um alarme: esculturas sacras missioneiras de São Borja, originárias das Reduções Jesuíticas, estavam prestes a serem leiloadas online — tratadas como simples mercadorias expostas em prateleiras digitais, sujeitas ao maior lance. Entre elas, destacava-se uma peça emblemática: o chamado “São Jorge Missioneiro”, que permanecia em São Borja desde o fim da Guerra do Paraguai, como um relicário vivo da história local.

Denunciamos o leilão ao Ministério Público e ao IPHAN. A mobilização coletiva conseguiu suspender a venda, mas, diante da inércia da gestão pública local, a escultura acabou sendo adquirida pelo Museu Municipal de Santo Ângelo. Após pesquisas, a peça foi reidentificada como “Nosso Senhor das Palmas”, tornando-se uma das principais atrações do novo museu da cidade. Apesar do alívio de vê-la preservada na região, lamentamos que a aquisição tenha ocorrido pelo mercado privado — prática que alimenta o ciclo do comércio ilegal de patrimônio cultural. Em meio ao inaceitável, tratou-se do "mal menor" — ainda assim, um sintoma da fragilidade institucional que enfrentamos.

Esse episódio não foi um ponto fora da curva. Integra uma longa sequência que denuncia a vulnerabilidade histórica e institucional de São Borja e de toda a região missioneira. A cidade já sofreu duas tentativas frustradas de tombamento federal, negadas pelo Conselho Consultivo Nacional do IPHAN — como se o tempo, o descaso e o mercado tivessem mais peso que o próprio Estado brasileiro. Essa omissão revela, de forma clara e urgente, a necessidade de que o IPHAE (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do RS) atue com vigor, promovendo o tombamento estadual para assegurar a proteção definitiva desse patrimônio ameaçado.

É imprescindível compreender o tombamento como um verdadeiro escudo jurídico e cultural, uma muralha erguida para conter a dispersão, o tráfico e o desaparecimento do patrimônio histórico. Trata-se de um instrumento que não apenas reconhece o valor das peças, mas que as protege por meio de um regime legal robusto. Todos os municípios que ainda guardam acervos oriundos do período reducional deveriam, por responsabilidade histórica e compromisso com a memória, promover o tombamento de suas obras. Contudo, esbarramos, infelizmente, na falta de conhecimento técnico e na desvalorização cultural em nível local — lacunas que perpetuam a negligência e expõem nosso patrimônio ao abandono ou ao comércio ilícito.

Sem o tombamento, nossas obras missioneiras permanecem expostas, vulneráveis, como corpos sem defesa diante de traficantes, leiloeiros e colecionadores. O tombamento não apenas impede o comércio e a alienação indevida, mas também estabelece um compromisso coletivo de preservação, educação patrimonial e vigilância contínua. É um selo oficial que proclama: este patrimônio é nosso, tem valor e deve ser protegido.

O descaso, porém, não é recente. Desde o século XIX, São Borja assiste ao escoamento silencioso de sua imaginária missioneira, como um cofre aberto e constantemente saqueado. Em 1893, quatro esculturas foram enviadas à Exposição de Chicago e nunca mais retornaram — um sequestro cultural sem resgate. Em 1922, o pároco Hermenegildo Gambetti foi brutalmente espancado e expulso para a Argentina, acusado de vender peças sacras da matriz. Décadas depois, em 1959, a demolição da antiga matriz apagou um retábulo barroco documentado por Lúcio Costa — um desaparecimento tão conveniente quanto inexplicável.

Essas cicatrizes continuam abertas: durante a ditadura militar, um padre presenteou um general com uma peça missioneira, que hoje integra o acervo do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. Nas décadas de 1980 e 1990, multiplicaram-se as apreensões de peças contrabandeadas. Em 2007, um pastor da Igreja Universal queimou um santo missioneiro — um crime cultural que ganhou repercussão nacional e cujas cinzas ainda nos envergonham. Mais recentemente, um pároco da própria matriz de São Borja pintou a pia batismal histórica, como quem tenta apagar, com tinta, os traços de sua própria identidade.


Santo Queimado

Essa sucessão de agressões revela uma tríade persistente: ausência de consciência pública, políticas públicas ineficazes e falta de um tombamento nacional que reconheça e proteja formalmente a imaginária missioneira móvel. As esculturas remanescentes das Reduções não são apenas entalhes de madeira; são testemunhos visuais de um dos períodos mais complexos e significativos da história latino-americana. Em qualquer nação que valorize sua memória, estariam protegidas como os Moais da Ilha de Páscoa ou os Guerreiros de Terracota da China. No Brasil, porém, apenas o acervo da Igreja de São Luiz Gonzaga foi tombado em nível federal, deixando o restante invisível, vulnerável e à margem do reconhecimento oficial.

Por isso, o IPHAE precisa agir com urgência, promovendo o tombamento estadual das obras ainda existentes em São Borja e em outras cidades missioneiras. É necessário construir um verdadeiro muro institucional contra o tráfico, o descaso e o esquecimento. Além disso, o país deve instituir um Inventário Nacional da Imaginária Missioneira, acompanhado de políticas permanentes de tombamento, fiscalização rigorosa e educação patrimonial nas escolas e nas comunidades.

Cada peça vendida, destruída ou esquecida é uma página arrancada de um livro que jamais poderemos reescrever. Sem memória, São Borja perde o seu significado, e o Brasil rompe com o fio que costura sua própria história. Não proteger esse patrimônio é, em última instância, renunciar à nossa identidade coletiva e condenar o país ao esquecimento de si mesmo.

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