São Borja: a capital do Barroco Missioneiro
São Borja: a capital do
Barroco Missioneiro
Imaginária missioneira em ferro, propriedade particular
Nas
últimas semanas, tenho me debruçado sobre as 510 fichas do inventário da
imaginária missioneira realizado no Rio Grande do Sul no final da década de
1980. Esse levantamento representa uma ação vital para preservar, valorizar e
reconhecer a herança cultural deixada pelas Missões Jesuíticas Guarani — um
patrimônio que transcende fronteiras e integra o legado universal da
humanidade.
A imaginária
missioneira é o conjunto de esculturas sacras produzidas para fins
devocionais e catequéticos nas reduções, sendo um dos mais ricos testemunhos da
fusão entre o barroco europeu e a arte indígena guarani.
Em São
Borja, foram inventariadas 86 esculturas, além de outras oito, hoje espalhadas
por diferentes cidades, mas originárias da antiga Redução de São Francisco de
Borja. Há indícios de que peças de Santo Antônio das Missões também tenham sido
entalhadas ali. Nem todas as esculturas do município foram registradas
oficialmente, muitas vezes por medo, desconhecimento ou práticas de ocultamento
— como no caso dos santos do pau oco, imagens ocas usadas para esconder
objetos valiosos. Já identificamos mais 12 esculturas missioneiras em acervos
privados e religiosos, e estima-se que muitas outras estejam espalhadas pela
cidade e pelo interior.
Com
esse conjunto, São Borja possui hoje o maior acervo do barroco missioneiro no
Brasil, superando até mesmo São Miguel das Missões, cujo museu se formou na
década de 1940 com esculturas retiradas de várias cidades, como Santo Ângelo,
São Luiz Gonzaga, São Lourenço, São João e São Nicolau. Em São Borja, as
esculturas foram preservadas graças à resistência de um padre local que impediu
sua retirada.
O
inventário revela a riqueza e complexidade dessa arte, uma expressão singular
do barroco latino-americano. Diferente do esplendor europeu, o barroco
missioneiro floresceu nos pampas, marcado por espiritualidade, dramaticidade e
síntese cultural. Produzidas por indígenas sob orientação jesuítica, as
esculturas mesclam a estética barroca com técnicas, símbolos e sensibilidades
guarani.
Além
do valor artístico, a imaginária teve papel essencial na catequização e
educação dos povos originários. Esculturas de santos, mártires e cenas bíblicas
eram utilizadas como ferramentas pedagógicas e espirituais, traduzindo dogmas
cristãos em formas visuais compreensíveis. Tornaram-se, assim, elo entre
culturas, permitindo aos guarani incorporar novos símbolos à sua fé ancestral.
O
inventário é, portanto, mais que um registro técnico: é um gesto de reparação
histórica e reconhecimento da contribuição indígena ao patrimônio nacional. É
urgente que os municípios com acervos missioneiros promovam o tombamento local
dessas peças, e que o Estado do Rio Grande do Sul, por meio do IPHAE, assuma o
protagonismo na proteção estadual desse legado. Diante das limitações do
tombamento federal — que reconhece apenas 13 esculturas da igreja de São Luiz
Gonzaga —, cabe ao Estado garantir que a riqueza da imaginária missioneira não
permaneça oculta, como um santo do pau oco, mas seja plenamente revelada
e celebrada por todos.
· Artigo publicado no jornal Folha de São Borja, edição 4635 do dia 26/07/2025.


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